- Quando começou?- o enfermeiro assustado, com os olhos castanhos
arregalados, me perguntou. – Tem muito tempo?
- Começou o que?- eu nem estava doente. Só estava tirando
sangue por rotina e precaução mesmo.
- A areia no sangue.
Senti vontade de rir. De gargalhar. Só de me imaginar com
areia no sangue, já pude me ver vestida com uma capa bege e um uniforme brega o
suficiente para ser considerada heroína do Rio de Janeiro. Mulher-Areia. Areia
Girl. Mas eu me controlei, balancei a cabeça para afastar essa imagem medonha e
tentei responder com calma.
- Não tenho areia no sangue, moço. Eu tenho sangue mesmo. –
o enfermeiro apontou com a cabeça para a seringa que estava ao lado do meu
braço e eu dirigi meu olhar até a mesma. Ela estava cheia sim, mas cheia de
areia. E não era areia de praia não, parecia areia de obra inacabada. Areia
suja e que ninguém nunca iria usar. Meu ar falhou por alguns segundos e tenho
certeza de que o enfermeiro sabia o que eu estava sentindo. – Que tipo de
brincadeira é essa?
- Dona, eu não estou brincando. – ele tinha bolsas enormes
de olheiras debaixo dos olhos e imaginei que ele estive trabalhando desde cedo
mesmo. E o pior: Não estivesse afim de brincar com paciente.
– A senhora nunca
sentiu nada diferente?
- Eu nunca senti nada.
‘Eu nunca senti nada.’ Repeti mentalmente enquanto analisava
a seringa cheia de areia. Não sentia nada mesmo e havia bastante tempo. Três
anos? Talvez mais. Tinha secado por dentro, mas por fora continuava a mesma.
Ainda deixava uma lágrima escorrer antes de ir dormir, deixava o pensamento de ‘não
quero estar sozinha.’ me invadir no meio da tarde, mas de alguma maneira
sobrenatural me obriguei a ser mais forte que isso. Me obriguei a parar de sentir e aos poucos tudo foi fazendo sentido. Chorar, ter medo, tremer e querer me esconder já não faziam mais parte de mim.
Nem eu queria que esses sentimentos me dominassem para sempre.
- Talvez seja por isso que você não tenha sangue. Você não
está sentindo nada.