terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Só tem areia.


- Quando começou?- o enfermeiro assustado, com os olhos castanhos arregalados, me perguntou. – Tem muito tempo?

- Começou o que?- eu nem estava doente. Só estava tirando sangue por rotina e precaução mesmo.

- A areia no sangue.
Senti vontade de rir. De gargalhar. Só de me imaginar com areia no sangue, já pude me ver vestida com uma capa bege e um uniforme brega o suficiente para ser considerada heroína do Rio de Janeiro. Mulher-Areia. Areia Girl. Mas eu me controlei, balancei a cabeça para afastar essa imagem medonha e tentei responder com calma.

- Não tenho areia no sangue, moço. Eu tenho sangue mesmo. – o enfermeiro apontou com a cabeça para a seringa que estava ao lado do meu braço e eu dirigi meu olhar até a mesma. Ela estava cheia sim, mas cheia de areia. E não era areia de praia não, parecia areia de obra inacabada. Areia suja e que ninguém nunca iria usar. Meu ar falhou por alguns segundos e tenho certeza de que o enfermeiro sabia o que eu estava sentindo. – Que tipo de brincadeira é essa?

- Dona, eu não estou brincando. – ele tinha bolsas enormes de olheiras debaixo dos olhos e imaginei que ele estive trabalhando desde cedo mesmo. E o pior: Não estivesse afim de brincar com paciente. 

– A senhora nunca sentiu nada diferente?

- Eu nunca senti nada.

‘Eu nunca senti nada.’ Repeti mentalmente enquanto analisava a seringa cheia de areia. Não sentia nada mesmo e havia bastante tempo. Três anos? Talvez mais. Tinha secado por dentro, mas por fora continuava a mesma. Ainda deixava uma lágrima escorrer antes de ir dormir, deixava o pensamento de ‘não quero estar sozinha.’ me invadir no meio da tarde, mas de alguma maneira sobrenatural me obriguei a ser mais forte que isso. Me obriguei a parar de sentir e aos poucos tudo foi fazendo sentido. Chorar, ter medo, tremer e querer me esconder já não faziam mais parte de mim.

Nem eu queria que esses sentimentos me dominassem para sempre.


- Talvez seja por isso que você não tenha sangue. Você não está sentindo nada.

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